quinta-feira, 6 de setembro de 2012

As ladeiras e as cinzas


"Recomeçando das cinzas. Eu faço versos tão claros. Projeto sete desejos. Na fumaça do cigarro..."

Ele vinha descendo as ladeiras de pedra de Olinda. Ouvindo Alceu Valença, pensando no desmantelo da tarde e no calor que incendiava sua alma. Enquanto andava pelas ruas estreitas, vendo o mar e suando em bicas, pensava no livro que estava lendo sobre a Revolução Cubana. Tinha certeza que se fosse aplicado no Brasil não daria certo em lugar algum. Só em Pernambuco. Só aqui. Tinha decidido fazer essa viagem, mochilando e de ônibus.  E sozinho. Com seu Iphone, suas músicas, pensamentos e lembranças. E encantado com cada esquina da linda vila.

"Eu quero Tchu. Eu quero Tcha. Eu quero Tchu, Tcha Tcha..."

Ela estava de saco cheio dessa excursão. Queria ter ido para Porto Seguro. Mas os pais insistiram em vir para Recife. Achava até vista bonita lá de cima da Igreja da Sé. Mas sentia falta do namorado. E da turma toda que tinha ido pra Bahia. Pelo menos tinha seu Iphone e ouvia o que queria. Nem escutava o papo do guia, contando que a cidade era uma das mais antigas do Brasil, patrimônio histórico da humanidade. Só escutava os "tchus e tchas" e sentia o calor queimando as têmporas. Embora "têmpora" fosse uma palavra que não conhecia....


"Recomeçando das cinzas, vou recompondo a paisagem/ Lembro um flamboyant vermelho/ No desmantelo da tarde..."

Subia mais uma vez a Ladeira da Misericórdia. Sonhava com uma vida diferente. Longe daquela cidade fria e multitudinária que é São Paulo. Já tinha 25 anos, trabalhava na Bolsa desde os 23. E, depois de tomar um chifre da namorada com o chefe dela, sentia que era o fim do seu período em Sampa. Queria viver mais arte, respirar mais música, criar mais. Poderia bem administrar seus fundos de ações de um computador, sentado na varanda de um desses casarões...

"Tchu, tcha, tcha, tchu, tcha tcha!"

Pensava: "Já tenho 18 anos, não preciso mais viajar com meus pais. Já sei muito bem o que eu quero e quando quero. Não tenho motivos pra vir pra cá...." Acabou a bateria do seu Ipod. Continuou com o fone para que seus pais não a perturbassem. Mas resolveu prestar atenção na cidade. E, mesmo não sendo do seu gosto, achou lindo aquelas casinhas coloniais, uma coladinha na outra.... E, finalmente, resolveu olhar, esgueirando-se pelas esquinas, o mar. Aquela beleza verde esmeralda, do alto de uma ladeira lhe emocionou a ponto de dar um nó na garganta.  Não sabia se era o calor, mas alguma coisa tocou seu coração.... O sol começava a se pôr e já voltariam para a pousada....

"Lembro um flamboyant vermelho/No desmantelo da tarde/A mala azul arrumada/Que projetava a viagem..."

Ele decidiu voltar para a pousada, pensava em comer algo, com cada vez mais certeza do que queria. Com vontade de não mais voltar pra São Paulo. Querendo se perder em ladeiras, organizar um bloco de carnaval, aprender Maracatu... Lembrou que hoje era noite de Lua Azul e resolveu acelerar para a pousada, só tomar um banho rápido, se trocar e descer para o Varadouro e ver a lua surgir magnífica do mar de Olinda....

Quando deram um esbarrão. Ela olhando pro Ipod e balançando para ver se voltava a funcionar. Ele pronto para desligar:
-Desculpe, mocinha!
"Mocinha?" Pensou ela
- Falou, tiozão!Tudo bem, deixa pelo menos eu ouvir o que tem no seu Ipod!
-É Alceu Valença, conhece?
-Deixa eu ouvir...
"Recomeçando das cinzas/Eu faço versos tão claros/Projeto sete desejos/Na fumaça do cigarro..."

E ela, estranhamente emocionada, ouvia com os olhos brilhando e um meio sorriso lindo, lindo. Já estava meio tocada com a cidade e agora essa música...

"Recomeçando das cinzas vou renascendo pra ela/ E agora penso na réstia/ daquela luz amarela"

Terminou a música. Começaram a conversar. Ele, encantado com o meio sorriso, perguntou se ela queria ver a lua nascer no Varadouro, que eram só uns 5 minutos descendo. Ela topou. Ela contou que nunca tinha ouvido essa música, nem nada desse Alceu. Ele disse que depois de ver a lua iria mostrar pra ela a casa do cara, que passava o ano no Rio e o carnaval em Olinda. E conversaram, conversaram e abriram o peito, deixaram o coração falar. Tão diferentes, tão parecidos. E se apaixonaram. E ouviam, cada um com um fone, a música que seria aquela canção especial que todo o casal que se preza tem.

"Mãe, Pai, eu não vou voltar pra São Paulo!"
"Chefe, eu peço demissão. Pago a multa e tudo mais, mas não vou voltar pra São Paulo"

Resolvidos. Decidiram alugar um casarão ali nos "Quatro Cantos" e decidiram que lá ficariam. Os pais dela, a princípio, protestaram. Mas viram que ele era um bom rapaz. E que eles mesmos tinham uma história parecida. O chefe dele nem ligou. Sabia que ele já não tinha cabeça para trabalhar há uns meses. E topou até fazer um acordo. E eles ficaram em Olinda...

"E agora penso que a estrada da vida tem ida e volta/ Ninguém foge do destino, esse trem que nos transporta"...

Organizaram a vida. Mobiliaram o casarão com móveis usados. Apaixonados, vivam apenas o dia. E resolveram montar um ateliê na entrada da casa. Rapidamente os vizinhos, enxeridos, aprovaram o casalzinho. E pisaram em nuvens naqueles três meses iniciais, onde tudo é lindo, tudo é verdade, os braços e abraços não se desgrudam. Até terem a primeira briga. Até perceberem que eram muito diferentes. Até ele perceber que ela era uma pós-adolescente fútil. Até ela perceber que ele era um velho aos 25 anos. Até perceberem que tinha sido tudo uma loucura. Até ele levá-la para a estação de ônibus. E na despedida ela chorar lágrimas vazias e ele sorrir aliviado. E nunca mais se viram. Nunca mais se falaram. Nunca mais se apaixonaram.

E a Lua seguia brilhando azulada e linda no verde esmeralda da beira-mar de Olinda...

"Ninguém foge do destino, esse trem que nos transporta..."