segunda-feira, 27 de agosto de 2012

20 mg de felicidade...


Foi assim que decidiu, conversando com um passarinho verde que acabava de fugir da gaiola. Ramona queria bater asas. Cansada desse mundo de iniquidades e injustiças, de mensalões e escândalos, violência e clássicos horrorosos como o último Flamengo e Botafogo.  Queria ir para lá do horizonte, conhecer a face oculta da  Lua. Decidiu não tomar nem os antidepressivos nem o remédio para aquilo que o doutor chamava de "esquizofrenia moderada". E sentiu-se livre, livre!!

Saiu para a rua. Subiu no primeiro ônibus. Não deu "tchau", para as flores. Não se despediu de Ernesto e Nazaré, seus gatos. Nem afagou Ladislau, seu poodle irritante. Simplesmente entrou no primeiro ônibus e decidiu viver a vida... Foi parar em Olinda. Subiu ladeiras. Fez gestos obscenos para as câmeras de vigilância. E ria, ria muito, ria alto! Feliz. Observou, lá do alto da Sé, a vista mais bonita do mundo. Sentiu o cheiro do mar. E das tapiocas que começavam a ser feitas... Descalça, sentiu também o areia grossa e úmida na beira de uma boca de lobo. E correu, desceu ladeiras. Sentia-se sem freios e não percebia os olhares curiosos. E alguns preconceituosos.

Tinha separado um bom dinheiro. E deixou enfiado naquele bolsinho pequeno da calça jeans. E também na calcinha. Não queria ser roubada. Podiam achar que era louca. Mas ninguém poderia pensar que fosse burra. Decidiu ir até a rodoviária da cidade e pegar um outro ônibus. Queria ir pro norte. Sempre sonhou em conhecer São Luís. Pagou a passagem, de ida, e foi. Cantando, sorrindo, feliz. Imitando Alcione, subiu no Expresso Guanabara: "Minha estranha loucura, é tentar te entender e não ser entendida..." Só sabia a letra até ali.

Não notava que os outros passageiros olhavam feio para ela. Dizia "olá" e "bom dia" para todos os mandacarus do caminho. O coração batia forte. Em Serra Talhada, pôs o corpo todo pra fora do janela e gritava: "Olá, Serra lindaaaa! Olá!!! Olá dia!!" Não percebeu que o motorista olhava pra trás, além de desconfiado, irritado. Os passageiros já se conversavam. Pensavam em tomar alguma atitude. Porém, Ramona nem entendia mais nada! Dava voz aos seus bichos interiores e sentia-se inebriada de tanta felicidade e alegria. Tinha saído de casa há quase 16 horas e, cansada, dormiu. Noite de lindos sonhos. Nele, o psiquiatra dizia: "Viu? É só ser feliz que passa". E, para alegria dos passageiros, dormiu até Teresina.

Acordou eufórica! Sentia-se curada! Já fazia 24 horas que não tomava seus remédios. Foi a todos os passageiros e dizia, um a um: "Essa é a cura, amigo, a felicidade". Foi até a frente do ônibus. Pediu para o motorista parar, pois queria pisar no chão do Piauí. O motorista, já sem nenhuma paciência, disse para ela ter calma, pois a parada, de 2 horas, era logo ali na frente. E então percebeu, que além de louca, essa galega era bem jeitosinha....

E começou a pensar em maneiras de conversar com essa doida. Fazia 4 anos que a mulher tinha morrido. Desde então, nada. Outra cidade, outro RG, outro nome...Não, a culpa não tinha sido dele. Foi a esposa que pediu para que apertasse mais. Não queria aquela tragédia. Mas também não iria em "cana". E teve que fugir... e viveu nesse limbo desde então. Mas essa louca, que cantava sem parar, não iria ligar de dar um beijinho, quem sabe mais... A parada era no próximo posto.

Ramona foi para o fundo do ônibus, no banheiro. Não aguentou esperar mais. Quando saiu, estavam todos do lado de fora, esticando as pernas. Nem percebeu o olhar maníaco do motorista. Mal sentiu a primeira pancada...Ficou zonza, língua na sua garganta. Tentou lutar, mas sentiu outra pancada e outra mais...Em pouco tempo já não sentia mais nada... O ônibus tocou em frente sem ela. E sem o motorista, que terminou seu turno e, discretamente, a levou para um matagal atrás do posto. Ramona já não sorria, já não se achava curada, já não era feliz. Quando tomou a primeira facada no pescoço nem gritou. Sentindo o sangue borbulhante e quente na garganta, sonhou com Ladislau, o poodle irritante, e com seus gatos Ernesto e Nazaré e sentiu saudades de cada um dos seus remédios, os seus 20mg de felicidade...


quarta-feira, 22 de agosto de 2012

A metafísica e a eleição.


Perdia pedaços conforme andava. Quando não deixava o rim, era sempre o fígado ou o pâncreas. O corpo, dissolvia como um sonrisal.... E tinha que voltar, a cada passo do caminho. Buscando seus órgãos e vísceras. Para que chegasse completo à estação. O trem já tinha chegado e esperava para sair. Com uma sacola, saia perguntando: "Você viu um coração pulando por aqui? Mais ou menos do tamanho do meu punho, vermelho sangue, saltitando?" Não, não tinham visto.

Com tudo já na bolsa, lhe faltava o coração. O trem apitava. Pronto para sair. E ele não podia ir sem aquele que lhe enche o lado esquerdo do peito. Corria pela estação. Nada de encontrar seu órgão favorito. Bem que a vó dizia: Não podemos ir a canto algum sem o nosso coração. Ele, preparado para uma longa viagem em direção à capital, pensava nas palavras da avó. Viva, mas há muito enterrada. Não havia mais tempo. Tinha que embarcar. Fechou o peito, pregou o esterno e subiu no vagão. A viagem tinha de continuar.

"Já lhe dei meu corpo, minha alegria
 Já estanquei meu sangue, quando fervia
 Olha a voz que me resta
 Olha a veia que salta
 Olha a gota que falta pro desfecho da festa
 Por favor
 Deixa em paz meu coração
 Que ele é um pote até aqui de mágoa
 E qualquer desatenção, faça não 
 Pode ser a gota d'água..."

Ouvia Chico no vagão-restaurante e começava a perceber que não tinha tanta saudade assim daquele músculo ingrato que insistia em bater descompassado. Não poderia era ter perdido o fígado. Esse sim ficou feliz de ter recuperado. Pediu um gim-tônica duplo e foi olhar a paisagem. Quase não notava mais ninguém ao seu lado. Viu, pela janela, a pobreza  daquele canto esquecido do Estado. Crianças corriam junto ao trem, tentando vender balas para comprar cola para cheirar. Não se importou. Pediu mais um drinque. Ficou feliz de ter intacta também a língua e todas suas papilas gustativas... Mas sabia que se continuasse naquele ritmo, em breve, sentiria um certo arrependimento de não ter deixado o estômago pra trás....

Sentou-se ao lado de uma família. Ouvia suas histórias. Que drama!  Iriam visitar um parente em estado terminal. Um câncer já espalhado. E comentavam que a tia contava os gritos de dor do marido. Aquele tio que sempre cuidou, ajudou na escola, pagou os estudos, ensinou a torcer pro time certo. E choravam. Ah, como choravam. Levantou-se, cansado de ouvir as fungadas, e foi buscar outro drinque. Já tinha bebido bastante água, sentiu-se feliz por ter voltado para buscar o rim. E foi para outro vagão. 

Dessa vez, pediu licença e se posicionou em frente de uma senhora com seu cachorro. Já bem idosa, o cão já bem velhinho. Achou que ali teria paz. A senhora, claro, puxou conversa. Mas falava mais com aquele animalzinho sarnento. Disse que seria a última viagem deles. Que seus tempos haviam acabado. E que o "Bolinha" ia ser sacrificado. Mas que, lá  no interior, de onde vinha o trem, não poderiam acabar com o sofrimento do "Bolinha" de forma digna. Ele, já cansado de tanta história, esperou o primeiro túnel. Arremessou o cachorro pela janela. Levantou-se sorrindo e ouvindo os gritos desesperados da senhora. Aliviado e sem sentir aperto algum no peito. 

Voltou para o vagão do bar. E lá ficou até o fim da viagem. Finalmente! Pegou seu título e foi direto para a seção eleitoral. Enfrentou meia hora de fila. Indiferente aos apelos (sempre há uma boca de urna), votou no candidato que representava o Governo do Estado. Sentia-se anestesiado. Voltou à Estação para pegar o trem de volta para o interior, quase sem entender nada, com a cabeça muito mais leve que o normal. E, com muito esforço, percebeu que antes de apertar o botão "confirma", tinha também perdido uma boa parte do cérebro. Agora, além do coração, tinha perdido quase toda sua massa cinzenta. Usou ainda os poucos neurônios que sobraram, tentou ligar para o Palácio do Governo, queria saber como se filiar ao partido do Governador...Deu ocupado. Começou a discar de novo 0...11... 2193...8282...



domingo, 19 de agosto de 2012

A beleza da dúvida

A beleza da dúvida- Inspirado no texto de Xico Sá 

Pois é.... Três impedimentos. E seguidos. O mundo Corintiano bradou: Injustiça!!! O que eu vi: Beleza!
Finalmente, algum homem da bandeira errou contra o Campeão da Libertadores...  Protegidos que são pelos "apitadores".... O futebol vive de momentos como esse. Erros clamorosos. Mas tão absolutamente claros, que se tornam um poema. Acabo de ler o blog do Xico Sá (http://xicosa.blogfolha.uol.com.br), e fiquei cá com meus botões pensando o que aconteceu com a dúvida. Onde foi parar, não só no futebol, a dúvida?

Vivemos em tempos estranhos. Onde todos temos certeza. E quando não as temos, buscamos num rápido toque num Iphone qualquer, a Santa Wikipedia para sanar todas as questões. Que mundo tolo é esse? Em outros tempos, caso discutíssemos, por exemplo, o ano que Cartola nasceu, alguns teriam uma ideia. Poucos teriam quase certeza. E pelo menos dois teriam convicção. E era o início da discussão; a mesa de bar ficava muito mais animada. Um batia no peito e com toda certeza desse mundo e de outros mais: "1909, não há menor sombra de dúvida. E digo mais foi lá pro finzinho de outubro". O outro, rindo ironicamente, afirmaria: " 11 de outubro de 1907 e não se fala mais nisso". Pesquisas seriam feitas em outras mesas, garçons seriam consultados. E até ligações para aquela tia fã de samba e quase centenária, seriam feitas. E torcidas organizadas, de um lado e de outro, espreitariam ao pé do Orelhão (lembra dele?), para testemunhar o final da discussão. E se tia Marinalva já estivesse dormindo, ficaria para a Barsa, quando chegasse em casa. Com aquele seu cheiro característico, no alto da estante...

Hoje, se colocarmos uma câmera no teto de um bar e tirarmos uma foto panorâmica em direção às mesas, veremos nucas cabeludinhas olhando para seus respectivos celulares. Muito próximos dos seus umbigos. E as discussões começam e se encerram, rapidamente, com certezas absolutas. E com todas as fontes possíveis. As mesas de bar estão muito mais silenciosas. Discussões acaloradas sobre dúvidas nascidas no calor das talagadas, com torcidas formadas e defendendo cada lado apaixonadamente, já não mais existem. Aquele amigo mais sábio, conhecedor de quase tudo, foi substituído sem misericórdia pelo "seu" Google. Sem choro nem vela, os tempos da dúvida e dos entreveros, causados pela vontade de dominar o saber, se acabaram em quase todos os campos da vida...

Não podemos nem nos perder mais.... Não temos o direito de errar o caminho!!! Quando não estamos seguros da rota e, em dúvida, dobramos naquela direita lá, ouvimos: "Recalculando, ande 150 metros e dobre à esquerda", com diversos tipos de vozes a escolher, o GPS é a verdade e o caminho. E até pra quem é mais careta, há o Google Maps. Imprime a direção, passo a passo, um pequeno mapinha e o caminho está traçado. Nada de pedir informação e ser mandado pro outro lado da cidade. Nade de parar no posto, rasgar o mapa tentando desdobrar (e nunca mais conseguir dobrar do jeito que estava). Ou procurar aquele Guia Quatro Rodas 1984, já amarelado, para tentar saber se a "Pousada do Barão" era  mesmo o melhor hotel de São Pedro da Coroa Espinhosa. Mais uma vez, ao alcance do botão, temos avaliações precisas, opiniões de quem já esteve lá e  fazemos o "check in", cheios de certeza.

Por isso, saúdo o futebol e seus erros. Posso estar enganado, mas a tecnologia pode ser utilizada para sanar dúvidas em quase todos esportes. Mas não no nosso querido futebol. Nem um replayzinho no estádio é permitido. Quando estamos num campo e um lance no qual um erro magistral como o do bandeirinha desse último Santos e Corinthians acontece, a discórdia é semeada. Discussões entre torcedores acontecem na arquibancada, mutias vezes dentro da mesma torcida! No gramado, alguns jogadores consultam o goleiro, outros vão xingar ou aplaudir o bandeirinha. Mas a dúvida paira. Pelo menos até o intervalo ou até o fim do jogo, quando consultam o infeliz do tira-teima. E aí, a bela dúvida se encolhe e vira, tristemente, uma certeza. Peço à Fifa que nunca se renda à tecnologia dentro dos gramados. Para que não terminemos enterrando de vez a dúvida. E para que não vivamos, também no futebol, a neurose da eterna certeza.


sábado, 18 de agosto de 2012

Acid Jazz

Ilustração by Olivier Bonhomme

O que mais impressionava, eram as palmeiras e o jazz...
Sem notar que tudo mais girava, o Cuba-Libre fazia efeito
E sem poder mais dançar, mexia sonolento os pés
E logo morto jazia, sem o que era seu de direito

O calor insuportável lembrava sua infância no Oeste Paulista... Mas não. Nada seria parecido com o que sentia naquela ilha. Aquela gente, aquele som. Aquele sopro severo, a voz rouca e forte do cantor, somada às talagadas da sétima Cuba-Libre deram-lhe coragem suficiente: Nada de hotel. Ia explorar a cidade. Esperou a banda terminar aquela improvisação. Já não conseguia nem aplaudir. Movimentou-se com dificuldade. Mas, resoluto, tomou um gole de alguma bebida da mesa do lado. Nem ouviu os protestos. Já estava do lado de fora.

A noite não refrescava nada. Entretanto, o suor escorrendo, aparentemente, não parecia arrancar o álcool do seu corpo. Mas, depois de 15 minutos andando, deixara de cambalear. Quando se está num lugar diferente, tudo é surpreendente. Tudo parece calmo. Tudo está por descobrir. E aquela ruela era igual a todas as vielas do mundo. Também não era novo o ritual de encostar na esquina e vomitar. E seguia andando, a esmo, navegando livre numa onda de calor que beirava o ridículo:

- Ninguém merece um calor desses!!!! Ninguém!!

Conversava com o infinito. Que também não queria responder. Mais horas foram se passando. E calmamente deixava de sentir os efeitos dopantes da bebedeira. Mas já estava completamente perdido. Quando ouviu alguém sussurrar seu nome. Olhou, assustado: "Quem caralhos me conhece aqui nessa porra?" Nenhuma resposta. Começou a perceber que a rua vazia, quase sem casas, terminava numa encruzilhada. E aquele medo, comum a quem está sozinho, bateu.  E ouviu seu nome de novo dessa vez mais alto: " Raul!"

Tentava controlar o medo. Mas um calafrio percorreu toda sua alma. Será que a sua hora tinha chegado? Ou simplesmente perdera totalmente a lucidez? Começou a andar mais rápido.

"Raul.... Raul.... Raul...."

Ouviu de novo. O som era claro e a voz era grave e rouca. Começou a correr. Só não sabia onde ia. Mas não deixava de correr.  Cada passo mais rápido, mais a voz perseguia:

" Raul... Raul...Raul..."

Desespero. Começou a querer gritar. Mas a voz não saía.... E começou a pensar absurdos enquanto corria: " É a vingança, sabia que esse dia iria chegar".... E aquele chamado o perseguia. Para onde quer que fosse... Corria em diagonais, pensava em bater em alguma casa, mas o que diria? Mal sabia falar a língua desse povo....e ouvia:

" Raul....Raul....Raul...."

Cada vez mais perto, quase sussurrando ao seu ouvido.

"Raul, Raul...."

Quando avistou o bar. De longe podia ver os mesmos músicos ainda tocando. O bar. A salvação. Já não aguentava mais correr. Chegou, tropeçando no balcão do bar... Quase aos gritos, interrompendo a banda de Acid Jazz  disse, desesperado, caprichando no sotaque "portunhol":

-Garçon! Por...favor, mas una Cuba- Libre, señor.

E metendo a mão no bolso, olhou para o frasco de Rivotril e pensou: "Amanhã vou tomar um só...."

O sol já começava a apontar no horizonte e o grupo de Jazz tocava cada vez mais alto, saudando o que, mal sabia ele, seria sua última alvorada....








State of Soul...


Tarde cedo, um domingão

De repente, num arroubo de energia

Na certeira ambição

Levanta do sofá na fantasia

Esgueira-se entre mesa e fogão

Abre, com receio, a geladeira vazia

Encontra aquela lata esquecida atrás do feijão

Puxa e trisca a unha, estalada sadia

Desce o líquido loiro, amorenando o coração.


Navegando no hiperespaço inter-craniano latente, sente cada molécula da gelada...
Facilitando as sinapses criativas. Massageando as mais tensas, conversando com os neurônios que precisam de mais atenção e que estão entrando pela esquerda do palco pra tocar “All my loving” com os que moram lá no cerebelo.

Os azuis olhos enxergam ao redor. À frente, uma tela. À direita, uma bandeira do Santos e uma flâmula do Real Madrid e um violão. À esquerda, mesas, uma miniatura da torre Eiffel em vidro. Cenário posto. Definidamente mutável. Agnosticamente religioso, dogmaticamente plural. Todo o mundo janela afora. Todo o universo olhos a dentro. Pássaros, carros, Gênesis. Composto cenário sonoro. 

Levantando a passos largos e lentos. Encaminhando para a porta. Desce um lance de escadas de carpete. Abre as portas. Árvores, como que pegas no pulo, começam a se cobrir. Já não há sinal de neve. Tranqüilidade e verde por dois quarteirões. Avenida movimentada. Zebra estirada garante travessia sem sustos e sem sinais, vermelhos ou verdes. Nem sorrateiramente amarelos. Só zebra. Catedral de cânticos, culpas e mirra à direita. Dois quarteirões de prédios antigos e árvores. Canivete em mãos, escreve no tronco: "Não leia essa merda". Nada a dizer. Segue. Caminhando por la calle, liga o som. Entra na loja. Compra mais loiras. Segue amaciando o cérebro. Bob Dylan toca alto. 

Sobe no táxi. Viaja em silêncio. Não informa onde vai. Salta de repente, no sinal, deixa vinte reais no banco da frente. Entra no teatro abandonado. Cria um monólogo. Sai aplaudido pelo público imaginário e alguns sem-teto. Volta ao lar correndo. Sobe as escadas acarpetadas. Passa pela geladeira. Encontra o feijão que escondia a cerveja. Come, gelado, com mostarda. Liga a tevê e para de pensar...






Recife...ah, Recife....







Eu vou morar em Recife, Olinda será meu quintal,
Ladeiras, areias e troças
Seguir ao norte e visitar Lia,
Tomar cerveja nas palhoças
Fazer do sol eterno, moradia.
Ritmada melodia, baque virado ou rural…

quarta-feira, 15 de agosto de 2012

Sol de Inverno



Ela sentiu frio. Fazia 23 graus em Recife. E ela sentiu frio. Disse que a “friagem” vinha desde a espinha e lhe fazia tremer. Eu ri. Frio com 23 graus? Ela sorriu de volta e pediu um abraço. Assim, com o braço em volta dos seus ombros, seguimos andando, à beira do Capibaribe, em direção ao Cinema São Luiz. Falou da reforma do prédio e das salas do Cinema com os olhos brilhando. Era apaixonada por essa cidade. Tinha nascido aqui. Ficou anos fora e voltava, depois de quase uma década. Conheceu o mundo, morou na Europa. Esteve na Índia. Pescou no Alasca, banhou-se no Ganges. Subiu o Himalaia e os Andes. Morou no norte do Canadá. E eu pensava: Por que raios voltou? A timidez e a saudade não me deixavam perguntar. E ela falava. Contava das belezas que viu pelo mundo. Do frio do norte, do sol da Índia. Do vento Andino. Eu, sem nunca ter ido mais longe que a Paraíba (ok, já estive em Natal), ficava abestalhado, só sonhando com o que ela me contava.

Cruzamos a ponte. Ela cantarolou Lenine. “Caminhar pelas águas nesse momento”. Disse que nunca deixou de ouvir música daqui. Mas tinha conhecido o Rock Alternativo, Trance, música folclórica de todos os países que esteve. Dizia, sem modéstia nem arrogância: Minha vida foi uma “National Geographic” em movimento. E eu, embasbacado, me perdia no infinito dos seus olhos verdes. E ouvia suas histórias. E lembrava da minha viagem pra Pedra do Ingá na Paraíba, onde vi as inscrições mágicas. E lembrava que minha vida era, no máximo, um “Guia Quatro Rodas”, e só a Edição Nordeste. E ainda da lombra e do enjoo da volta desse passeio, depois de tomar um litro de Pitú. Tinha 15 anos e era quando Chico Science começava a fazer sucesso nacional… Eu mencionei a viagem e ela se lembrou. “Como me esqueceria?”, perguntou rindo… Foi ali que eu tomava meu primeiro fora. Ela fechou um dos olhos e comentou, matreira,  que era paranoia minha. Que ela tinha dito "sim", eu ouvi "não" e que o som estava muito alto no meu walkman. E ainda tinha vômito no canto da minha boca…Ela era a minha “Risoflora”…

Já chegando em frente ao cinema, depois de tudo que ela me contou, eu tomei coragem e perguntei: Por que então voltou? Foi a saudade do Maracatu? Do Recife Antigo? De dançar Ciranda em Itamaracá? Meu coração pulsava e dizia “pergunta se foram saudades suas, vai…pergunta!” Ela só sorria e fazia que não com a cabeça; Eu seguia: Das praias? Do verão? Da Família? E o coração gritando: “Pergunta se eram saudades suas, seu imbecil!” Ela suspirou. O coração parou por um segundo e ela disse: “Se eu contar você não vai acreditar… Eu voltei por causa do sol de inverno maravilhoso desse nosso Recife….” "Sol de Inverno??? Sol de Inverno????", queria gritar. O coração começou a bater descompassado. Girou mais que a minha cabeça naquela volta da Pedra do Ingá. Coloquei os fones no ouvido. Já havia preparado para esse momento. Tocava, no último volume: “Oh Risoflora não me deixe só…” Entramos no cinema. A música alta nos ouvidos não me deixava pensar. Eu mal lia os seus lábios: “Tire o fone, tire o fone”….Minhas mãos pousaram levemente no seu pescoço. Ela ria… até sentir o aperto. Vi seus olhinhos verdes se enrubescerem. Quando ouvi o estalo da sua cervical, percebi que tinha acabado a bateria do Ipod.  Ainda ecoava no meu ouvido “Oh Risoflora…não me deixe só”. Saí do cinema. Eram 5 da tarde e o “sol de inverno” começava a se pôr….